quarta-feira, 18 de abril de 2007

E depois sou eu que falo demais…

O Tojó tocou à campainha. Sara sentiu um calafrio, algo no peito, uma pulsação mais forte que lhe dizia que alguma coisa se passava, se passaria. Sem dar grande importância à premonição, abriu a porta e deixou-o entrar.

Durante mais de uma hora, ficaram sentados lado a lado na mesa da cozinha. Discutiam arduamente a matéria em questão, mas nem por isso o trabalho de português avançava.

- Poesia é uma seca. – afirmou Tojó. – Se ainda déssemos Bocage ou uma cena do género. Camões até tem partes porreiras n’Os Lusíadas, mas essas damos nas aulas. Agora mandam-nos discutir velhos rezingões e tretas destas.

Tojó levanta-se de repente da cadeira e pronuncia dramatizando:

- Vão, vão filhos da puta, vão morrer longe que nós ficamos aqui na miséria. Vão, que têm mais sorte do que juízo. Vão lá foder com essas ninfas e fornicar com deusas que nós ficamos por cá neste país atulhado de merda nas valetas e de cheiro a peixe cru. Arre.

Tojo estendeu-se derreado no sofá.

Sara não conteve o riso. Apesar de todo o teatralismo do amigo, tinha que lhe dar razão. Afinal, em tantos séculos, as coisas ainda não tinham mudado assim tanto.

- Sim, Tojó, tens toda a razão, mas não podemos pôr isso no trabalho. O pessoal até aplaudia e tal mas não me parece que a stôra ache muita piada.

- Um copo de água se faz favor, que este velho está para morrer.

- És demais, rapaz. – e foi-lhe buscar o tal copo de água. Ao abrir o armário por cima do fogão para tirar o copo, a tal sensação voltou a ataca-lhe fortemente o coração. – Foi deste treatrinho. – pensou.

Mas ao estender-lhe o copo, Tojó pegou-lhe no pulso e fez com que ela se sentasse ao seu lado.

- O que é que estás a fazer? – perguntou-lhe.

- Não penses, Sara. Deixa-te ir.

Beijou-lhe o pescoço e afastando-lhe os caracóis rodeou de pequenos beijos todos os milímetros quadrados da sua orelha esquerda. Sara ainda lhe pegou nas mãos para as afastar dos seus seios, porém deixou-se efectivamente ir.

Estendidos no sofá preto da sala, Tojó afastava-lhe agora as pernas e deitou-se em cima dela. Entre beijos daqueles que não se vêm no cinema porque de técnico nada têm, lá conseguiu meter a mão por dentro da blusa. Ela mordeu-lhe a língua em sinal de desagrado.

- Beijas mesmo bem, linda.

- Não me provoques Tojó! Mordo-te novamente.

E entre um sorriso malandro lá lhe respondeu:

- É isso que eu quero.

E fintando-se mutuamente por instantes, Sara apercebeu-se que já nada havia a perder. O mal já estava começado, mais valia levar aquilo até ao fim.

Sara segurou-lhe a cabeça com as duas mãos e deu-lhe um beijo. E naquele entretém de olhares, já ele tinha acabado por conseguir desapertar-lhe a blusa com as mãos que mantinha perdidas no peito dela.

- O que estás a fazer? Não afastes as tuas mãos das minhas.

- Podes ficar com as mãos.

Deram as mãos. Mas ele não parou. Desceu até ao peito e apoderou-se dos seios dela. Beijou-os intensamente e ela apertou-lhe as mãos.

- O que estás a fazer? – perguntou-lhe novamente.

- Falas demais, sabias?

- E tu matas-me do coração…

Conseguiu largar-se das mãos delas e puxou-lhe os joelhos para cima, contra as suas coxas.

- Sara, não quero fazer nada que tu também não queiras. Gosto muito de ti. És linda, sabias? E quero-te, quero-te muito. Mas és tu quem decide.

Esboçou um daqueles sorrisos encantadores que a definem e segredou-lhe como se lhe contasse o mistério da origem do mundo:

- E depois sou eu que falo demais…

sábado, 14 de abril de 2007

Mar Português [Fernando Pessoa]


Se a alma não é pequena...

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.

Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

...tudo vale a pena!

Infante [Fernando Pessoa]

Para todos os heróicos sonhadores que resistem às forças do conformismo!

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa, Mensagem

sábado, 7 de abril de 2007

O Cão [Afonso Lopes Vieira]


Quem bem me conhece sabe que odeio cães. Mas já tive uma cadela: Julieta, uma dálmata.
Acima de tudo, este poema é para os "amigos-cães" que temos a felicidade de encontrar vida fora.
É também uma espécie de homenagem a um outro poeta leiriense. A biblioteca municipal tem o seu nome: Afonso Lopes Vieira.


O cão
Que faz ão, ão
É bom amigo como os que o são!

É bom amigo, bom companheiro,
É valente, fiel, verdadeiro,
Leal, serviçal,
E tem bom coração

Que o diga o seu dono, se ele o tem ou não!

Quem vem de fora, a gente
E chega a casa, é o cão
Quem diz primeiro, todo prazenteiro,
Saltando e rindo
Contente,
E com olhos a brilhar de amor:
- "Ora seja bem vindo
O meu senhor"

O cão
Que faz ão, ão
É bom amigo como os que o são!

Afonso Lopes Vieira nasceu em Leiria em 1878.
Este escritor esteve envolvido em campanhas e projectos pessoais de revalorização do património e da cultura portugueses.
Poeta tradicionalista, revalorizou temas e formas do repertório lírico nacional, num estilo simples de sabor popular. Faleceu em 1946.

Vilancete [Francisco Rodrigues Lobo]


Em jeito de homenagem a um grande poeta talvez desconhecido do grande público. Mas como até era lá da minha terrinha...
Mulheres! Um tema para muitas conversas.

PS: em sua honra, foi atribuído a este poeta o nome do liceu onde frequentei o secundário. Para todos os que lá conheci, um grande beijo.
Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo (Liceu para os amigos)

Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
Tão tirana e desigual
Sustentam sempre a vontade,
Que a quem lhes quer de verdade
Confessam que querem mal;
Se Amor para elas não vale,
Coração, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
Se alguma tem afeição
Há de ser a quem lha nega,
Porque nenhuma se entrega
Fora desta condição;
Não lhes queiras, coração,
E senão, olha o que queres:
Que mulheres, são mulheres…
São tais, que é melhor partido
Para obrigá-las e tê-las,
Ir sempre fugindo delas,
Que andar por elas perdido;
E pois o tens conhecido,
Coração, que mais lhe queres?
Que, em fim, todas são mulheres!

Francisco Rodrigues Lobo nasceu em Leiria em 1579.
Foi poeta, prosador e pedagogo. Muito influenciado pela lírica camoniana na obsessão do desengano.
É considerado o iniciador do Barroco na literatura portuguesa.
Morreu a 24 de Novembro de 1621.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Soneto do Prazer Maior [Bocage]


Este poema é uma homenagem a todos os amores, a todas as promessas verdadeiras e impiedosas e também a todas as mentirosas juras vãs.

Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.

Bocage